Ruminando pensamentos tolos e toscos, ligava o computador naquela manhã. O ato de apertar um botãozinho parecia tão óbvio, tão rotineiro, tão ordenado, que seus dedos doíam.
Naquela manhã, como em todas as outras, digitaria números e letras que não eram realmente frutos de sua imaginação, mas da (falta de) criatividade alheia. E, ainda assim, assinaria embaixo.
No momento seguinte ao ato de ligar o computador, puxou o gancho do telefone. Não disse "alô", como achava correto. Disse o nome da empresa: "#$*&@#%$, bom dia".
Naquela manhã, como em todas as outras, diria dezenas de vezes: "#$*&@#%$, bom dia", não porque queria, mas porque era correto.
Acordara com estes sentimentos e pensamentos esquisitos. Era como se tudo em sua vida fosse estrangeiro. Sua rotina transformou-se em estranhamento.
Lembrou-se do poema de Fernando Pessoa, travestido de Ricardo Reis: “Minha mesma lembrança é nada, e sinto/Que quem sou e quem fui/São sonhos diferentes”.
Sonhava-se outra naquela manhã.
Talvez ligasse o computador, mas as letras que surgiriam na tela seriam outras. Provavelmente não haveria números. Certamente atenderia ao telefone. E diria alô simplesmente.
Talvez engatasse uma conversa sobre a poesia de Fernando Pessoa, sobre os livros que não leu, sobre os filmes clássicos que precisava rever. Depois, lembraria um trecho de uma música do Vinícius e perguntaria: "essa conversa não seria melhor acompanhada de um vinho branco quase gelado, ao som de um jazz clássico?".
Olhou para a tela brilhante. Estranhou os contrastes. Não reconheceu o tamanho, nem o zoom. Até que alguém a chamou: "Ana!". Era o chefe. Infelizmente, reconheceu.
Ana às vezes acordava sentindo-se de certa forma alheia ao mundo. Mas naquele dia o estranhamento era maior. Talvez fosse capaz de levantar e andar indefinidamente em direção a algum mar, a algum abismo, a alguma trilha sem fim, em que caminhasse, caminhasse, caminhasse, sem jamais chegar a um destino.
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