domingo, 14 de junho de 2009

Domingo

Um depois do outro. Para baixo e para cima. Esticados e dobrados. Unhas brancas. Pés gelados. Olhando para eles, Ana pensava no que faria aquela tarde.

Acordara minutos antes ao som do alarme antibombas da Paulista. Nunca entendera direito para que um alarme antibombas em momentos de paz, em um país que nos tempos recentes não conheceu a guerra (à parte a urbana).

De qualquer forma, por motivos bem pessoais, gostava daquele alarme. Impedia que ela dormisse demais aos domingos. Meio-dia estava sempre de pé. Ou ao menos de olhos abertos.

Naquele domingo, 10 de abril de 2005, ainda não havia levantado da cama. Olhava para seus pés, pensando aonde os levaria naquela tarde.

Sempre precisava ao menos de uns 20 minutos para sair da cama. O momento de acordar era o pior de seu dia. Preguiça. Não era uma mulher (mulher?) diurna.

Contraditoriamente, odiava, sim, a palavra é odiar, odiava fazer nada.

Levantou.

Apartamento de um quarto grande até, para os dias de hoje. Estava de bom tamanho para alguém sozinha.

Os pés gelados no chão, andava pela casa. Há um ano chegava a Sampa. Achou que seria uma reviravolta na sua vida. Não teve medo. Estava cansada no Rio, sentindo-se empacada.

Realmente, a reviravolta veio. Não foi exatamente como imaginava. Foi o fim de sua infância protegida. Não sabia que o tempo atual era bem diferente do tempo da casa dos seus pais.

Viveu em casa os amores fraterno e paterno. Conheceu a ética, o bem-estar, as brigas e revoltas também, é verdade. Mas tudo com muito respeito.

Criança que era, achava que conhecia o mundo, esnobava a ingenuidade e tinha certezas “absolutas”. Achava que a mentira era para poucos, vejam só. E o pior: acreditava que era forte. Que se virava sozinha. Que sempre saberia o que fazer. Que o afeto era fácil.

Em Sampa, conheceu a solidão. E não estava sozinha.

Quando, enfim, tomou um banho e se arrumou para sair, já eram mais de duas da tarde.

Foi à livraria FNAC da Paulista. Morava a uma quadra da avenida, na Campinas, do lado menos nobre, o Centro. Havia lido em algum lugar que a FNAC não gostava de ser chamada de “livraria”, porque era mais do que isso. Não gostou. Pensava: o que pode ser “mais” do que uma livraria? Nunca deixou de ir, entretanto.

Comprou o jornal e sentou no café da livraria. Leu o jornal de ontem, com notícias de anteontem, como já dizia o poeta. Essas coisas rápidas dos tempos de hoje às vezes a incomodavam. Principalmente aos domingos. Não navegava na internet, sequer ligava o computador nos fins de semana. Era uma regra que se impôs.

- Naninha!

Virou. Só seus amigos mais próximos e antigos a chamavam assim. Mal acreditou quando viu Alexandre. Amigo de colégio. Graaande Alex!, respondeu.

Que saudade! Que saudade! Era o afeto de que precisava. Alex sempre foi um de seus amigos mais inteligentes e afetuosos. Não daquele afeto superficial, sem compromisso. Mas de um amor real, que sempre estava presente quando um de seus queridos precisava.

Ao mesmo tempo, sabia ser sarcástico e irônico quando queria. Tinha um discurso cínico, que não combinava com seu jeito de ser. Quem o conhecia, sabia.

- Naninha, que saudade!
- Puxa, você veio para Sampa e nem me ligou...
- Vim a trabalho na sexta, ia voltar no mesmo dia, mas decidi ficar mais alguns.
- Entendi. Que bom te ver! O que você vai fazer hoje? Está sozinho?
- Vou encontrar uma menina mais tarde. Conheci num barzinho na sexta.
- Entendi. Legal! Senta aí. Vamos tomar café juntos.

Sentiu as ondas de afeto, a delicadeza do sentimento que dá sem pedir retorno, e sentiu-se como uma bateria quase vazia colocada em uma tomada. Feliz.

Alex não era bonito. Ao contrário, muitos diriam que era feio mesmo. Ela, no dia que o conheceu, também achou. Mas, hoje, brigava quando falavam algo do tipo a seu respeito. Sempre dizia:

- Ele é um dos caras mais bonitos que já conheci.

E realmente achava. Não metaforicamente apenas. Achava.

Conheciam-se há dez anos. Brigaram uma vez, quando tinham 16. Os dois, muito competitivos, tiveram uma discussão áspera por causa de um jogo de sua época, chamado “Imagem e Ação”. Ana tinha certeza de que não era permitido usar o alfabeto, nenhuma letra! Ele insistiu no contrário. Brigaram e ficaram várias e intermináveis horas sem se falar.

Depois voltaram. Falaram-se como se nada houvesse acontecido.

E esta foi a briga que tiveram.

Ana pensava em Alex como um irmão. Gostava dele de uma forma infinita, muito terna. Mas não era sexualmente atraída por ele. Ao contrário, houve um período em que Alex foi realmente apaixonado por Ana, nos idos dos anos 90. Este período passou. Passou de todo coração. E Alex via Ana como uma irmã.

- O que você tem feito de bom?
- Trabalho. Trabalho.
- É, eu também.
- Gosto do meu trabalho, só que às vezes sinto falta da arte.
- Eu estou bem. Gosto muito do que faço. Trabalho demais, às vezes me estresso, mas não consigo pensar na vida de outra forma, contou Alex.

E ficaram conversando por algumas horas, uma conversa de quem se vê sempre. Uma conversa que não indicava que há muitos meses eles nem se falavam, pelas distâncias da vida.

Quando Alex teve que ir embora para encontrar a menina, Ana estava feliz, apenas por ter encontrado o amigo. Sentia-se outra. Mais confiante, a Ana de antigamente.

Era engraçado. Ana tinha convicções muito fortes sobre a vida. Sabia muito sobre o certo e o errado, o bom e o mau, o querer e o não-querer. Aquele ano sozinha em São Paulo abalou suas certezas. E o contato com Alex fazia com que elas voltassem, ao menos por algum tempo.

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