sexta-feira, 26 de junho de 2009

Sexta-feira

Permitiu-se chorar naquele momento. Pensou em colocar uma música triste no MP3 e cultivar a tristeza como fez ao longo da adolescência, ao som do CD "Let it Be", dos Beatles. Mas o pensamento passou como uma rajada de vento em sua mente. Não era mais adolescente. Não queria mais cultivar a tristeza.

A lágrima quase solitária caiu lentamente, a tempo de senti-la deslizar em sua bochecha e secar por ali mesmo.

- A lágrima seca é um aviso. Pra que chorar, pra que sofrer, se há sempre um novo amor, a cada novo amanhecer?, pensou cantando e sorrindo.

Foi até o MP3 ligado a umas caixinhas de som e escolheu um sambão da Beth Carvalho, que adorava ouvir em festas animadas:

Chora!
Não vou ligar
Não vou ligar!
Chegou a hora
Vais me pagar
Pode chorar
Pode chorar


E começou a dançar sozinha.

Ligou para uma amiga querida, uma dos velhos tempos, a quem via e com quem falava época sim, época não.

- Oi!!!! Sabe o que estou ouvindo?
- Naninha, é você?
- Oi!!! Sabe o que estou ouvindo?
- Abaixa isso aí, pô!!
- Adoro essa música.
- Hahaha! Eu também! Tá animada, hein, gata.
- Vamos sair?

Priscila havia se mudado para São Paulo um pouco antes de Ana, por pura coincidência - ou porque cedo ou tarde todos se mudavam para São Paulo. Estudaram juntas no colégio, mas nem sempre na mesma turma. Em algumas fases da vida, tiveram diferenças que a afastavam como ímãs virados para o mesmo pólo. Nunca brigaram. Simplesmente percebiam.

Em comum, tinham o desejo de lidar bem com as diferenças. Numa fase, achavam tudo natural: amigos mauricinhos, amigos nerds, amigos suburbanos, amigos playboyzinhos, amigos maconheiros, amigos drogados, amigos certinhos, amigos doidões, amigos tímidos, amigos não-fede-nem-cheira... Todo mundo tinha alguma coisa especial, que ambas captavam com suas anteninhas moderninhas.

Enfim, ainda tinham contatos, mesmo que esparsos, com alguns exemplares de cada espécime. Mas não se pode negar que fizeram uma seleção inconsciente (talvez elas é que tenham sido selecionadas, não importa). Era a vida adulta mostrando mais uma de suas facetas.

- É muito chato ser adulto - soltou Ana, numa frase sem contexto.

Mas Priscila entendeu.

- Queria que alguém me dissesse se é melhor usar pregador de plástico ou de madeira, se é melhor comprar panela de inox ou com teflon, um colchão de mola ou de espuma, se omo é realmente melhor que ace... – listou uma infinidade de comparações esdrúxulas.

Uma das lamúrias mais constantes de Ana e Priscila após chegarem a São Paulo era a chatice da maioridade em vias de fato. Vivendo a cerca de 450 km de suas famílias, sentiram o choque da vida adulta com uma intensidade que não esperavam.

Consideravam-se maduras e responsáveis, capazes de resolver qualquer assunto. Mas, no fundo, ainda ansiavam pelo aval paterno. Levariam alguns anos para perceber isso e outros tantos para se livrar disso.

Saíram. Priscila reconhecia instantaneamente a TPM de Ana. Até que era divertida.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Quinta-feira

- Alô?
- Alô.
- Ana?
- Renato?
- Oi!
- Oi...
- Tudo bem?
- Tudo. E você?
- Tudo.
- ...
- Bom ouvir sua voz. Estou com saudades.
- hum...
- Você nunca mais veio ao Rio.
- Pois é.
- Estou com saudades.
- hum...
- O que você anda fazendo?
- Nada de mais. Trabalhando muito, para variar. E você?
- Estou fazendo um projeto muito legal. Criando uns virais com amigos para colocar no Youtube.
- Sério? Legal. Sobre o quê?
- Ah, sobre umas coisas. Depois te mando o link.
- Beleza.
- Quando você vem pro Rio?
- Não sei.
- Vem logo. Estou com saudades.
- hum...
- Bem, disse Renato, tenho que ir. Liguei só para dar um oi mesmo. Não deixa de me procurar quando vier ao Rio.
- ham, ham.
- Um beijo grande.
- Beijo.
- Estou com saudades.
- Tchau.

Ana se esforçava para não “cair na lábia” de Renato. Não queria se entregar às tramas e armadilhas de seu afeto interessado. Às vezes, ela conseguia. Era muito mais fácil pelo telefone. Mas bastava pisar no Rio de Janeiro...

Ele era interessante. Era inteligente. E, o pior, era lindo. Obviamente, um canalha. Mas como resistir às suas mãos grandes e protetoras?

Amor? Naquele momento Ana não amava ninguém. Nem Renato. A história deles era como se fosse apenas um trechinho da Quadrilha. Que poderia continuar, pois Renato não amava Teresa e não amava Regina, embora desse em cima das duas, que eram amigas de Ana, que se sentia perdida, mas nunca pensara em suicídio, embora às vezes flertasse com a melancolia, que era bem próxima da depressão, que não entrara na história.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Quarta-feira

Ruminando pensamentos tolos e toscos, ligava o computador naquela manhã. O ato de apertar um botãozinho parecia tão óbvio, tão rotineiro, tão ordenado, que seus dedos doíam.

Naquela manhã, como em todas as outras, digitaria números e letras que não eram realmente frutos de sua imaginação, mas da (falta de) criatividade alheia. E, ainda assim, assinaria embaixo.

No momento seguinte ao ato de ligar o computador, puxou o gancho do telefone. Não disse "alô", como achava correto. Disse o nome da empresa: "#$*&@#%$, bom dia".

Naquela manhã, como em todas as outras, diria dezenas de vezes: "#$*&@#%$, bom dia", não porque queria, mas porque era correto.

Acordara com estes sentimentos e pensamentos esquisitos. Era como se tudo em sua vida fosse estrangeiro. Sua rotina transformou-se em estranhamento.

Lembrou-se do poema de Fernando Pessoa, travestido de Ricardo Reis: “Minha mesma lembrança é nada, e sinto/Que quem sou e quem fui/São sonhos diferentes”.

Sonhava-se outra naquela manhã.

Talvez ligasse o computador, mas as letras que surgiriam na tela seriam outras. Provavelmente não haveria números. Certamente atenderia ao telefone. E diria alô simplesmente.

Talvez engatasse uma conversa sobre a poesia de Fernando Pessoa, sobre os livros que não leu, sobre os filmes clássicos que precisava rever. Depois, lembraria um trecho de uma música do Vinícius e perguntaria: "essa conversa não seria melhor acompanhada de um vinho branco quase gelado, ao som de um jazz clássico?".

Olhou para a tela brilhante. Estranhou os contrastes. Não reconheceu o tamanho, nem o zoom. Até que alguém a chamou: "Ana!". Era o chefe. Infelizmente, reconheceu.

Ana às vezes acordava sentindo-se de certa forma alheia ao mundo. Mas naquele dia o estranhamento era maior. Talvez fosse capaz de levantar e andar indefinidamente em direção a algum mar, a algum abismo, a alguma trilha sem fim, em que caminhasse, caminhasse, caminhasse, sem jamais chegar a um destino.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Terça-Feira

Não reconheceu em si a erudição de seu pai, a habilidade de sua mãe ou a grandeza moral de seus avós naquela terça-feira. Qual herança os mais diversos genes e as mais diversas mentalidades haviam deixado nela?

Às vezes questionava-se qual traço de sua personalidade e de seu cabelo havia herdado de seu trisavô. Aquilo simplesmente desaparecera?

De onde vinham aqueles constantes questionamentos? Não poderiam vir apenas daqueles 25 anos de vida.

Não acreditava em Deus.

Não acreditava no sobrenatural.

Mas acreditava na força das heranças, que era rica e repressora de uma forma imensamente intrincada.

O telefone tocou. Ana percebeu que aquele almoço durava mais do que o determinado. Absorta em pensamentos que a tornavam invisível, esquecera que o tempo da refeição era apenas de uma hora.

- Alô?
- Alô.
- Pois não?
- Cadê o documento da reunião?
- Na mesma gaveta.
- Ah! Obrigado! Onde você está?

"Boa pergunta", pensou. Mas respondeu:

- Pagando a conta do almoço.

Não gostava de comer sozinha, pois pensava demais. Pensamentos desconectados da realidade. Por mais que lesse uma revista enquanto comesse, hábito inteiramente copiado de seu pai, as elucubrações eram sempre sobre outros temas.

Aquele hábito que ela detestava em si, de segurar as próprias mãos enquanto falava sobre algo sério e, geralmente, desagradável, era ela ou seu trisavô? Adoraria atribuí-lo ao avô e, assim, se redimir da responsabilidade: é “culpa” da genética.

Talvez a teoria das heranças fosse apenas uma desculpa para não enfrentar suas próprias dores e dúvidas.

Naquele momento, não reconhecia em si a erudição de seu pai, a habilidade de sua mãe ou a grandeza moral de seus avós. Reconhecia, porém, as neuroses. Reconhecia as culpas. Reconhecia o medo de contrariá-los na essência e não na superfície, como sempre havia feito.

Aliás, todas as formas superficiais de contrariá-los foram burras. Perdeu coisas boas, pelo simples ato adolescente de contrariar. Mas nunca atingiu o essencial, que sempre seguiu sem verdadeiros questionamentos.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Segunda-feira

Ana compartilhava com Garfield seu ódio pelas segundas-feiras. Talvez sua melancolia fosse maior nesses dias. A consciência de ser acordada em horário pré-determinado por outros era mais intensa no primeiro dia da semana.

Sempre chegava atrasada ao trabalho. Se dissesse que não a incomodava o zum zum zum dos colegas quando aparecia quase 40 minutos depois do horário estabelecido, mentiria. Ao mesmo tempo sua vontade era gritar: “acordai, irmãos! Acordai, mas acordai na hora em que bem entendei, puta que pariu!”.

Contraditoriamente, seu senso de responsabilidade era muito forte, assim como seu orgulho. Talvez por isso seu chefe poucas vezes ousara fazer insinuações sobre o hábito marginal de chegar atrasada pelas manhãs. Ana algumas vezes lutou contra ele – o hábito -, mas quase sempre perdeu. E, depois, desistiu.

Era essa sua demonstração torta de marginalidade. Sua forma de mostrar que não era igual. Tola. Tola. Ela sabia. Sua dualidade era o desejo inseparável de pertencer e esnobar, de querer igualar-se e diferenciar-se com a mesma intensidade. Pensou em colocar aí a origem de sua melancolia, mas sabia que estaria sendo, mais uma vez, tola.

Na hora do almoço, gostava invariavelmente de companhia, especialmente de uma menina que conhecera no trabalho. Ela pouco, quase nada, tinha em comum com Ana.

Júlia era doce, tímida e triste. Sentia-se sempre menos. Ana tinha um sentimento maternal por Júlia. Admirava sua sensibilidade, embora tivessem gostos tão diferentes. Júlia não gostava de ler, era fã das comédias românticas americanas e adorava comprar roupas. Mas sabia as pessoas muito antes delas mesmas.

- Vamos descer?, ligou para Júlia.
- Vamos. Vou terminar de escrever um e-mail. A gente se encontra lá embaixo em cinco minutos, disse Júlia, desligando o telefone.

Quando Ana chegou ao lobby do prédio, Júlia já estava lá. Ela sempre chegava antes, nunca deixava ninguém lhe esperando. No íntimo, tinha um medo danado de ser esquecida.

- O Pedro não me ligou de novo. Não entendo o que está acontecendo.

Os homens de Júlia sempre a abandonavam aos poucos. Como se realmente deixassem de lembrar e, aos poucos, ela desaparecesse para eles.

Ana sentia uma tristeza por Júlia. Qual homem conseguiria ver por trás de suas distorções defensivas e a enxergaria realmente?

- Você também parece triste, Ana. Não fica não. A gente acaba se adaptando a tudo.

Júlia talvez tivesse razão, mas Ana sempre tivera dificuldade de adequar-se e, em São Paulo, essa falta parecia ainda maior.

No início, muita coisa a incomodava tremendamente em São Paulo. Sabia que muito era implicância, pura saudade de casa, recalque mesmo. Entretanto, nem tudo, nem tudo...

Começava pelo sotaque de uma parte dos paulistanos. Ao contrário de muita gente, não a incomodava o “r” caipira, quase americano, dos nativos do interior de São Paulo. Era o modo meio anasalado de falar, pronunciado especialmente por algumas “patricinhas” locais, que lhe dava arrepios.

O ar provinciano – pois é, dizia isso – de alguns paulistanos a surpreendeu. Essa mania de exibir o que têm, de só “freqüentar” determinados lugares “bem freqüentados”, por gente igual que só “freqüenta” os mesmos locais, essa mania era irritante demais para ela.

O cabelo liso da maioria das meninas, sempre de maquiagem, sempre de salto alto, sempre de bolsa-combinando-com-sapato, tudo isso a fazia sentir-se um peixe fora d’água.

Apesar de todas as críticas, tentava adaptar-se. Embora tenha se recusado a alisar os cabelos, comprou os tais sapatos de salto e adotou a maquiagem no dia-a-dia. Mas sempre achava que os outros perceberiam que não era ela ali atrás.

***

Aquela cidade representava igualmente solidão e liberdade. Acolhimento e distância. Clichê que fosse, sua mais completa tradução era mesmo a música de Caetano.

Nada sentiu quando cruzou a Ipiranga e a São João. Lembrou-se apenas da Avenida Nossa Senhora de Copacabana, sem a praia a duas quadras dali.

O tempo a ensinaria a abandonar o ressentimento pela cidade cinza. Sentindo-se íntima, passaria a chamá-la de Sampa.

Admiraria sua organização caótica. Seria, então, impossível não pensar nos belos contrastes da cidade como uma Lapa amplificada.

"Em São Paulo as coisas acontecem", era o que Ana repetia e no que acreditava. Era por isso que estava ali.

A beleza de São Paulo não era óbvia como a do Rio de Janeiro, era uma beleza sutil. De repente, percebeu-se um homem do tipo mais ordinário, que não enxerga além de belas coxas e seios fartos, que não percebe que as mulheres mais bonitas escondem-se em detalhes.

Levaria bastante tempo para perceber tudo isso.

Naquele momento, Ana pensava que ter duas casas era como ter nenhuma. Era como sempre algo faltar. Era como nunca pertencer.

domingo, 14 de junho de 2009

Domingo

Um depois do outro. Para baixo e para cima. Esticados e dobrados. Unhas brancas. Pés gelados. Olhando para eles, Ana pensava no que faria aquela tarde.

Acordara minutos antes ao som do alarme antibombas da Paulista. Nunca entendera direito para que um alarme antibombas em momentos de paz, em um país que nos tempos recentes não conheceu a guerra (à parte a urbana).

De qualquer forma, por motivos bem pessoais, gostava daquele alarme. Impedia que ela dormisse demais aos domingos. Meio-dia estava sempre de pé. Ou ao menos de olhos abertos.

Naquele domingo, 10 de abril de 2005, ainda não havia levantado da cama. Olhava para seus pés, pensando aonde os levaria naquela tarde.

Sempre precisava ao menos de uns 20 minutos para sair da cama. O momento de acordar era o pior de seu dia. Preguiça. Não era uma mulher (mulher?) diurna.

Contraditoriamente, odiava, sim, a palavra é odiar, odiava fazer nada.

Levantou.

Apartamento de um quarto grande até, para os dias de hoje. Estava de bom tamanho para alguém sozinha.

Os pés gelados no chão, andava pela casa. Há um ano chegava a Sampa. Achou que seria uma reviravolta na sua vida. Não teve medo. Estava cansada no Rio, sentindo-se empacada.

Realmente, a reviravolta veio. Não foi exatamente como imaginava. Foi o fim de sua infância protegida. Não sabia que o tempo atual era bem diferente do tempo da casa dos seus pais.

Viveu em casa os amores fraterno e paterno. Conheceu a ética, o bem-estar, as brigas e revoltas também, é verdade. Mas tudo com muito respeito.

Criança que era, achava que conhecia o mundo, esnobava a ingenuidade e tinha certezas “absolutas”. Achava que a mentira era para poucos, vejam só. E o pior: acreditava que era forte. Que se virava sozinha. Que sempre saberia o que fazer. Que o afeto era fácil.

Em Sampa, conheceu a solidão. E não estava sozinha.

Quando, enfim, tomou um banho e se arrumou para sair, já eram mais de duas da tarde.

Foi à livraria FNAC da Paulista. Morava a uma quadra da avenida, na Campinas, do lado menos nobre, o Centro. Havia lido em algum lugar que a FNAC não gostava de ser chamada de “livraria”, porque era mais do que isso. Não gostou. Pensava: o que pode ser “mais” do que uma livraria? Nunca deixou de ir, entretanto.

Comprou o jornal e sentou no café da livraria. Leu o jornal de ontem, com notícias de anteontem, como já dizia o poeta. Essas coisas rápidas dos tempos de hoje às vezes a incomodavam. Principalmente aos domingos. Não navegava na internet, sequer ligava o computador nos fins de semana. Era uma regra que se impôs.

- Naninha!

Virou. Só seus amigos mais próximos e antigos a chamavam assim. Mal acreditou quando viu Alexandre. Amigo de colégio. Graaande Alex!, respondeu.

Que saudade! Que saudade! Era o afeto de que precisava. Alex sempre foi um de seus amigos mais inteligentes e afetuosos. Não daquele afeto superficial, sem compromisso. Mas de um amor real, que sempre estava presente quando um de seus queridos precisava.

Ao mesmo tempo, sabia ser sarcástico e irônico quando queria. Tinha um discurso cínico, que não combinava com seu jeito de ser. Quem o conhecia, sabia.

- Naninha, que saudade!
- Puxa, você veio para Sampa e nem me ligou...
- Vim a trabalho na sexta, ia voltar no mesmo dia, mas decidi ficar mais alguns.
- Entendi. Que bom te ver! O que você vai fazer hoje? Está sozinho?
- Vou encontrar uma menina mais tarde. Conheci num barzinho na sexta.
- Entendi. Legal! Senta aí. Vamos tomar café juntos.

Sentiu as ondas de afeto, a delicadeza do sentimento que dá sem pedir retorno, e sentiu-se como uma bateria quase vazia colocada em uma tomada. Feliz.

Alex não era bonito. Ao contrário, muitos diriam que era feio mesmo. Ela, no dia que o conheceu, também achou. Mas, hoje, brigava quando falavam algo do tipo a seu respeito. Sempre dizia:

- Ele é um dos caras mais bonitos que já conheci.

E realmente achava. Não metaforicamente apenas. Achava.

Conheciam-se há dez anos. Brigaram uma vez, quando tinham 16. Os dois, muito competitivos, tiveram uma discussão áspera por causa de um jogo de sua época, chamado “Imagem e Ação”. Ana tinha certeza de que não era permitido usar o alfabeto, nenhuma letra! Ele insistiu no contrário. Brigaram e ficaram várias e intermináveis horas sem se falar.

Depois voltaram. Falaram-se como se nada houvesse acontecido.

E esta foi a briga que tiveram.

Ana pensava em Alex como um irmão. Gostava dele de uma forma infinita, muito terna. Mas não era sexualmente atraída por ele. Ao contrário, houve um período em que Alex foi realmente apaixonado por Ana, nos idos dos anos 90. Este período passou. Passou de todo coração. E Alex via Ana como uma irmã.

- O que você tem feito de bom?
- Trabalho. Trabalho.
- É, eu também.
- Gosto do meu trabalho, só que às vezes sinto falta da arte.
- Eu estou bem. Gosto muito do que faço. Trabalho demais, às vezes me estresso, mas não consigo pensar na vida de outra forma, contou Alex.

E ficaram conversando por algumas horas, uma conversa de quem se vê sempre. Uma conversa que não indicava que há muitos meses eles nem se falavam, pelas distâncias da vida.

Quando Alex teve que ir embora para encontrar a menina, Ana estava feliz, apenas por ter encontrado o amigo. Sentia-se outra. Mais confiante, a Ana de antigamente.

Era engraçado. Ana tinha convicções muito fortes sobre a vida. Sabia muito sobre o certo e o errado, o bom e o mau, o querer e o não-querer. Aquele ano sozinha em São Paulo abalou suas certezas. E o contato com Alex fazia com que elas voltassem, ao menos por algum tempo.